segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Entre Lovelock, James Cameron e os lêmures de Madagascar

Sei que deveria começar com um texto relacionado com alguma coisa a respeito do natal, das festas, das famílias, de uma festa de um aniversário de 2009 anos de idade [e que festa, diga-se de passagem!], ou pelo menos de um belo e, para não dizer menos, gordo banquete. Pelo menos para demonstrar um pouco de tato (ou para não perder a oportunidade de um belo clichê). Mas se não pelos ganchos natalinos, usemos então algo derivado deles: as férias! [e todos os seus efeitos colaterais]

Iniciamo-la na forma mais comum possível: Algumas noites mal dormidas por conta de resquícios de um semestre (para ser humilde) corrido. Alguns dias bem dormidos por conta de algumas noites mal dormidas. Viagens para as aglomerações típicas da época. Pilha de livros a ler, lista de filmes a ver e dentre esses alguns vão entrando de gaiato (como sempre). Nesses últimos, após um bem servido almoço básico de férias [e aqui, obviamente lê-se pizzas, pastéis e sanduíches - com um “iche” só!], o gaiato surgiu: dois ingressos para o filme “Avatar” de James Cameron.
Após um início previsivelmente previsível, com a apresentação dos protagonistas, da questão problema do filme, e de uma qualidade gráfica de tirar o fôlego digna de James Cameron, começamos com aquela clássica crítica que fazemos quando algo pisa no seu território tão amado de afinidade:
“Porque raios eles misturam tão diferentes grupos de animais? Ainda se fizessem uma criatura com algumas características de aves junto de algumas de lagartos. Mas que diabos faz aquele dragão com as extremidades das asas típicas de artrópodes? O que que custava pedir algumas direções para algum zoólogo?”

[Creio que a resposta seja simples: Fazem-no na tentativa de criar uma criatura mais bizarra ou interessante para o público infantil. Mas isso não tira a validade de minha última questão]. Enfim, passado esse inevitável início de relacionamento filme-espectador, passamos à próxima etapa. A moral do filme (que muito provavelmente se mostrará como frutos apenas no subconsciente das crianças que se entretiverem com as ricas cenas de ação). Esta [a moral do filme] de uma forma análoga e fictícia da teoria de Gaia, de James Lovelock. Até bonito de ver, e dá até uma invejinha. “Estaríamos em um caminho semelhante ao que estamos hoje se esta fosse nossa concepção de nossa gaia? Uma Eywa?”. É certo que não. Assim como é certo que esta não é a nossa concepção. [ou pelo menos da maioria esmagadora de nós; ou pelo menos da maioria esmagadora que tem poder para mudar por nós; ou pelo menos isso depende do que aceitamos como “nós”. Enfim.] Cenas tristes, cenas felizes, clímax de ação e efeitos diversos do tipo que você não sabe qual dos pontos da tela olhar [e então você se decide pela legenda], algumas cenas de guerra que eu não faria questão de meu filho assistir, e um final também previsível, mas que se fosse de outra forma o filme deixaria muito a desejar. [E graças a Deus, não tenho filho. Ainda.]

Mas de qualquer forma, em todo o decorrer do filme não pudemos deixar de analisar as mais diversas formas de criatividade dos desenhistas (ou sei lá como se chamam os responsáveis por tal atividade surpreendente, e perdoem-me pela ignorância os que estiverem lendo). Mais vale designá-los designers [sem correlações, por favor!]. Por vezes a morfologia das criaturas era nitidamente uma forma de híbrido de dois animais conhecidos, outras [algumas poucas, vale ressaltar*] eram 100% novas, mas a maioria era relativamente semelhante a espécies ou a grupos de espécies facilmente identificáveis, até mesmo por uma criança. Logicamente essa característica não era exclusiva à morfologia da criatura, mas era relacionada também ao seu aparente “nicho”. Alguns primatas braqueando agilmente por entre os troncos e copas das árvores, alguns carnívoros se movimentando sorrateiramente por entre a vegetação, alguns paquidermes meio deslocados no meio da mata fechada, alguns insetos bem com cara de coleópteras ou odonatas e os dragões [aqueles mesmo, os bizarros com as asas de artrópodes] fazendo lembrar um pouco os pterossauros ocupando o nicho das aves. Toda essa diversidade provavelmente menos diversa do que o esperado talvez à primeira vista promova um pouco de frustração. Mas me fez relacionar com um livro que estou lendo [um daqueles que não foi sugerido por ninguém e, como a todo bom brasileiro, se vendeu pela capa e pelo autor. E tem me surpreendido em seu conteúdo exposto de forma lúdica e simples.] intitulado “A grande história da evolução” de Richard Dawkins, em um capítulo [na verdade um conto] onde ele discorre a respeito da evolução e diversificação dos lêmures na ilha de Madagascar.
Dawkins apresenta a ilha de Madagascar como “um fragmendo de Gondwana que se separou do que hoje é a África há cerca de 165 milhões de anos e [...] do que viria a ser a Índia há cerca de 90 milhões de anos”. Uma ilha ainda inabitada por qualquer tipo de mamífero, mas com todo o seu ambiente já “pronto” e devidamente colonizado pelas outras formas de vida que hão de chegar lá mais facilmente que um mamífero em um evento de probabilidade ínfima e, portanto, extremamente fortuito. O fato do ambiente já estar “pronto” - ou melhor, suscetível - sem predadores naturais e sem concorrentes de “nicho”, faz com que um evento desse tipo (que seja de colonização de uma pequena comunidade de mamíferos ou mesmo de uma única e afortunada fêmea gestante) tenha, a primeiro momento, uma conseqüência de estabelecimento da população. Porém a longo prazo, este único evento migracional poderia ser responsável por fornecer “matéria prima” para uma completa diversidade de mamíferos. Com o afrouxamento da pressão da seleção natural, os descendentes desta população têm a possibilidade de se espalhar e ocupar todos os diferentes nichos que a ilha tem. E, ao longo das gerações, especiarem-se e especializarem-se: Mamíferos grandes, mamíferos pequenos, mamíferos carnívoros, herbívoros, insetívoros, frugívoros, diurnos, noturnos, aquáticos, terrestres, saltadores... Dawkins comenta de uma família exclusivamente madagascarense de animais parecidos com o musaranho, os tenreques:

“Outrora classificados na ordem Insectivora, hoje eles [os tenreques] são considerados pertencentes aos Afrotheria, [...] É provável que os tenreques tenham chegado a Madagascar como duas populações fundadoras distintas vindas da África antes de quaisquer outros mamíferos. Diversificaram-se, e agora são 27 espécies, entre as quais há algumas que lembram o ouriço-cacheiro, outras parecidas com o musaranho e uma que vive boa parte do tempo submersa, como um musaranho-d’água. As semelhanças são convergentes – evoluíram de maneira independente, ao modo caracteristicamente madagascarense. Como a ilha era isolada, não havia ‘verdadeiros’ ouriços-cacheiros nem ‘verdadeiros’ musaranhos-d’água. Assim, os tenreques que tiveram a sorte de estar lá, evoluíram e se tornaram os equivalentes locais do ouriço-cacheiro e do musaranho d’água.” (A grande história da evolução, 2009, p. 207)
E assim, muito provavelmente, a morfologia (ao adaptar-se para ocupar o nicho) convergeria às características morfológicas que vemos hoje. Tá, mas e quanto aos lêmures?

Eles não foram os primeiríssimos dentre os mamíferos a chegarem à ilha de Madagascar. Mas, assim como os tenreques, logo que se estabeleceram na ilha, diversificaram-se de forma surpreendente dentre os mais diversos hábitos de vida. Especializando-se e modificando sua morfologia de forma a ocupar os diferentes “nichos” em aberto. Com a expressão “em aberto” refiro-me ao fato de que, antes dos lêmures, não havia nenhum tipo de primata em Madagascar. Isto garantiu o palco para a seleção natural agir. E os lêmures foram seus protagonistas. Apenas para atestar a hipótese anterior [de que uma grande variedade de tipos de mamíferos seria uma conseqüência ao longo das gerações] espécies de lêmures madagascarenses vão de minúsculos primatas menores que um hamster, o Mycrocebus mioxinus, à animais parecidos com um urso e mais pesados que um gorila-de-dorso-prateado, o recém extinto Archaeoindris.

Como realmente aconteceu em Madagascar, muito provavelmente aconteceria em Pandora (o “Mundo” do filme Avatar), ou em qualquer outro lugar sob as mesmas condições (migração, mutação, deriva e seleção). Então, afinal, não é tão absurdo - e nem mesmo frustrante - ver tantos animais com características tão comuns em lugares tão diferentes. Mesmo que em outro mundo. Um lobo ocupando o lugar de um lobo num ambiente desconhecido seria de se esperar. Não fosse assim [ou não é assim] não o chamaríamos de lobo. Ou então, para reafirmar que não perdi o tato: uma rena... tá, vocês entenderam.




*Acredito que o motivo de poucas criaturas de filmes de ficção ter uma morfologia inovadora deva-se a dois motivos principais. 1) a falta de criatividade não apenas dos designers, mas intrínseca de nossa espécie, de estarmos sempre presos à visão de mundo que temos. Tanto com relação a propriedades físicas como proporções, relação de movimento e força/impacto. E 2) teríamos dificuldade para interpretar suas propriedades, suas ações, vulnerabilidade, risco, comportamento, humor e (por que não?) objetivo. Já que se trata de uma criatura projetada, definitiva e literalmente.